A maior página de pirataria de jogos e softwares do Brasil no X foi derrubada neste mês. A queda da Ecológica Verde, como é chamada, virou caso polêmico entre jogadores, reacendendo debates sobre acessibilidade à cultura e os altos preços praticados na indústria gamer. Comandado por um grupo de jovens, o projeto funcionava como uma forma de protesto contra o que consideravam práticas abusivas do mercado, trazendo links diretos para os conteúdos “grátis” aos usuários.
Para o grupo, os riscos são inúmeros, incluindo desde multas até pena de reclusão de quatro anos. Contudo, os responsáveis pelo perfil já sinalizam a intenção de voltar à ativa, reforçando as discussões sobre os limites entre pirataria, ativismo digital e consumo cultural no Brasil.
A história da Ecológica Verde é antiga: em março do ano passado, eu entrevistei o grupo, que afirmava educar e democratizar o acesso à pirataria. Inusitada, a proposta reconhecia os perigos dos sites de downloads ilegais, que frequentemente colocavam os usuários mais leigos em sérios riscos de golpes ou ameaças digitais — e, por isso, pretendia eliminar esse intermediário. A solução encontrada foi um tanto simples: buscar jogos e programas “pirateados” na fonte, e direcioná-los para os internautas.
Nesse contexto, não demorou para o projeto ganhar força e somar dezenas de milhares de usuários em sua comunidade no Discord. No X, o perfil @Ecologica_Verde ultrapassou os 200 mil seguidores, tornando-se uma das maiores referências no país entre fãs de jogos e programas piratas.
Mais uma vez, entrei em contato com a Ecológica Verde para falar sobre o caso. A nossa entrevista durou quase duas horas, em que conseguimos discutir e revisitar as nuances polêmicas do projeto. Confira agora!
A filosofia por trás da ‘pirataria democrática’
Quando conversei pela primeira vez com a Ecológica Verde, parte do grupo estava empenhada em lançar um aplicativo próprio, batizado de EcoLauncher. O software, independente e de código aberto, funcionaria como uma ‘Steam da Pirataria’, reunindo links para conteúdos sem custo e livre de vírus. Após a entrevista exclusiva, o projeto repercutiu e se tornou um sucesso muito maior do que o previsto pelos responsáveis — que preferiram cancelá-lo, por temor de represálias legais.
Embora a ideia do EcoLauncher tenha perseverado em outro projeto ainda maior, o plano original da Ecológica Verde seguiu firme. Em poucos meses, sua página no X praticamente dobrou o número de seguidores para os 220 mil, e se consagrou como uma figura “popular” no nicho gamer. Entre os jogos piratas, algumas publicações davam voz às reclamações de muitos internautas, especialmente quanto aos preços cobrados por lançamentos, pacotes de expansão ou polêmicas da indústria.

No Discord, a infraestrutura da Ecológica Verde é mais organizada, promovendo a discussão moderada entre usuários e canais educativos, além de guias e tutoriais. Naturalmente, independente das intenções, as práticas violam o uso da plataforma, que chegou a derrubar a comunidade pelo menos três vezes — o “Discord não era complacente e provocou queda por DMCA [Direitos Autorais],” comentou um dos administradores. Em todos os casos, a plataforma apenas aplicava algumas limitações automáticas, além de um aviso.
Mesmo com os percalços durante o último ano, a Ecológica Verde não mudou sua filosofia ou operação: “sempre foi sobre facilitar,” afirma um dos administradores, “é muito fácil achar coisa pirata, mas muita gente tem medo,” ele justifica. Para o grupo, o objetivo é educar o usuário contra os riscos da pirataria, com suporte, até que ele consiga se tornar independente. Contudo, os responsáveis esclarecem que não ensinam como desbloquear as travas de segurança nos programas e jogos: “a gente “crackeia” [não] nada”.

Segundo o grupo, a filosofia educativa parece dar certo: “muitos usuários normais entram, resolvem seus problemas e ajudam os outros”. A gestão “horizontal” do projeto, inclusive, dá espaço para que a comunidade contribua com a Ecológica Verde, inclusive com alguns membros se tornando parte do time administrativo com o tempo — que, curiosamente, é formado por jovens universitários, alguns com pouco mais de 17 anos.
A juventude dos jogos como serviço e planos de assinatura
Ainda que pareça estranho um grupo tão jovem coordenar uma das maiores frentes de “pirataria democrática” no Brasil, não é exatamente uma surpresa. Desde a popularização dos jogos em CD, no começo dos anos 2000, a relação brasileira com a pirataria se tornou cada vez mais íntima. Isso porque, além de cara, a distribuição de títulos originais era, para muitos títulos, limitada. Dessa maneira, para o consumidor médio de menor renda, era mais vantajoso adquirir um console “desbloqueado” e um conjunto de 5 jogos piratas por R$ 50 — muitas vezes, com direito à troca caso não tivesse gostado.
Embora isso pareça extremamente prejudicial às empresas — e deve-se, sim, confirmar o déficit em vendas —, a pirataria foi responsável por popularizar inúmeras franquias de jogos no Brasil, quando sequer a divulgação oficial chegava no mercado nacional. Este foi o caso de muitos jogos nichados, RPGs exclusivos do Japão, e por aí vai. Junto disso, essa distribuição irrestrita e a baixo custo também democratizou o próprio hobby de videogames, que foi se tornando cada vez mais caro com sua “domesticação” e extinção dos fliperamas.

Apenas em 2024, o Brasil enfrentou perdas estimadas em R$ 468,3 bilhões devido a atividades ilegais como pirataria, contrabando e falsificação — que, embora sejam frequentemente associados, são crimes diferentes. O número representa em um crescimento de 62% desde 2020, conforme reporta o site Isto é Dinheiro. No caso dos jogos, não há dados claros quanto às perdas, porém, um estudo da Entertainment Computing sugere uma perda de até 20% de receita esperada quando os títulos são “crackeados” durante a primeira semana de lançamento.
Eventualmente, os consoles e jogos evoluíram para oferecer recursos exclusivos para quem optasse por jogar online — e, assim, deveria abdicar da conveniência “pirata”. No PC, a partir da década de 2010, a Steam se consolidou como uma distribuidora confiável e com preços competitivos, oferecendo uma alternativa cômoda e mais acessível aos CD-Roms. Assim, como foi com a Netflix, a necessidade da pirataria decaiu no mundo dos jogos e sua “cultura” enfraqueceu.
Por esse motivo, ainda que tenham usufruído do final dos “anos dourados da pirataria nos jogos”, é seguro dizer que as novas gerações de jogadores não estão acostumadas com a ideia de piratear um jogo. Para os consoles, a alternativa se tornou mais técnica e invasiva, exigindo modificações exclusivas feitas por profissionais. No PC, os sites que ofereciam este tipo de conteúdo se tornaram fontes de vírus e outras ameaças digitais.

Portanto, neste contexto, não é estranho que um grupo de jovens tenha assumido a tarefa de “democratizar o acesso aos videogames” — já que, assim como os serviços de streaming, os preços no mundo dos jogos não param de subir. Antes consideradas opções de ótimo custo-benefício, assinaturas como Game Pass e PS Plus tiveram aumentos expressivos, impulsionados pela instabilidade econômica e pela crescente demanda por distribuição digital, que reduz a relevância das mídias físicas.
Até então, a Ecológica Verde afirma ter facilitado o acesso seguro a mais de 3 mil jogos piratas, além de algumas centenas de programas — tudo isso sem fins lucrativos, ou monetização direta. Além dos lançamentos, curiosamente, o título mais solicitado surpreende: “Bloodborne,” o grupo afirma sem hesitar, “no Twitter ou no Discord, só lemos ‘cadê Bloodborne?’”.

Caso não conheça, Bloodborne é um dos jogos mais populares da From Software, revisitando o gênero de RPG de Ação e soulsborne em uma roupagem gótica vitoriana. Para muitos, a fluidez, história e temas do título o consagram como um dos melhores do estúdio, e talvez de todos os lançamentos do PlayStation 4 — a única plataforma em que está oficialmente disponível, apesar da retrocompatibilidade no PlayStation 5. Por esse mesmo motivo, muitos fãs lamentam o aparente desinteresse da Sony, responsável pela propriedade intelectual, em dar segmento à franquia.
Apoio aos desenvolvedores indie no Brasil e preservação dos jogos
A situação de Bloodborne, The Crew e muitos outros jogos refletem um dos principais problemas na indústria moderna de jogos — a preservação de seu legado. Enquanto o icônico título da From Software segue preso no PlayStation 4, ao menos oficialmente, o título de corrida da Ubisoft teve seus servidores e vendas encerrados. Em ambos os casos, a alternativa para democratizar o acesso foi através da pirataria ou da emulação.
Sobre o tema, a Ecológica Verde afirma que a preservação dos jogos, via pirataria ou redistribuição autorizada, faz parte de sua proposta. Eles mencionam que, quando possível, há o contato direto com desenvolvedores para negociar a distribuição de jogos abandonados ou antigos — os chamados abandoware. Estes títulos não possuem mais comercialização oficial, ou suporte, e geralmente são de empresas que não existem mais. Entre alguns exemplos de títulos preservados pelo grupo, eles citam dois brasileiros: BIG BROTHER: The Game (2004) e Sandy & Junior: Aventura Virtual (2003).

Para o grupo, preservar e apoiar a indústria de jogos brasileira é parte fundamental de sua proposta. Por esse motivo, os administradores não “facilitam” o acesso a títulos brasileiros pirateados, enquanto ainda incentivam sua compra por meios oficiais. Essa postura, inclusive, já foi criticada por alguns usuários, que defendiam a expansão dessa medida para jogos independentes de outros países. No entanto, a Ecológica Verde se limita à defesa da produção nacional.
Eles pontuam: “vários conteúdos se tornam inacessíveis por meios legais, como é o exemplo das Lost Media,” contextualizam, “O acesso a grande parte desses bens culturais, e às vezes até educacionais, pode ser limitado tanto pelo poder aquisitivo ou até mesmo barreiras geográficas”. Nesse contexto, a atuação da Ecológica Verde seria um protesto: “pirataria nada mais é do que uma forma de resistência a modelos abusivos de distribuição,” concluem.
Videogame como cultura: não há amor no mundo dos jogos?
Enquanto a pirataria pode ser entendida como forma de protesto, na prática, pouco parece ter mudado no contexto nacional. Segundo a Ecológica Verde, muitos usuários chegaram a pedir entrevistas para a elaboração de pesquisas acadêmicas e Trabalhos de Conclusão de Curso. Porém, nenhuma ONG ou entidade governamental buscou contato com o grupo para aproximá-lo da lei — isto é, para distanciá-lo da pirataria e promover a mensagem democrática quanto à preservação cultural.
Pelo contrário, o grupo afirma que há, até mesmo, uma “demonização dos jogos” na atual gestão do governo. Eles citam uma fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que disse: “Não tem jogo, não tem game falando de amor, não tem game falando de educação. É game ensinando a molecada a matar.” O ocorrido se deu no Palácio do Planalto, em 2023, durante um encontro do presidente com os representantes dos Três Poderes.
Na ocasião, a fala polemizou ao ressuscitar o debate de que videogames poderiam incitar a violência por meio de seus temas — ainda que diversos estudos mostrem o contrário. A comunidade gamer brasileira lamentou o caso, que somente reforça a imaturidade política perante uma das indústrias mais lucrativas e importantes do mercado internacional.
Em 2024, segundo a Valor Econômico, a indústria global de jogos eletrônicos gerou uma receita estimada de US$ 187,7 bilhões, representando um crescimento de 2,1% em relação ao ano anterior.
Sendo:
- Jogos mobile: US$ 92,6 bilhões (49% do total), com crescimento de 3%;
- Jogos para PC: US$ 43,2 bilhões, com crescimento de 4%;
- Jogos para console: US$ 51,9 bilhões, com queda de 1% .
Mesmo sem intenção de lucro, “pirataria democrática” ainda é crime
Apesar do discurso educativo e da proposta de democratizar o acesso aos jogos, iniciativas como a Ecológica Verde esbarram em barreiras legais bastante rígidas no Brasil. Segundo o advogado especializado em direitos autorais Guilherme Carboni, o conceito de pirataria, para a legislação brasileira, não depende da existência de lucro ou monetização. Segundo ele, qualquer uso indevido de uma obra protegida por direitos autorais, independentemente de ganhos financeiros ou objetivos sociais, já configura violação.
Contudo, conforme explica Carboni, a simples disponibilização de links para conteúdo protegido, sem hospedar diretamente os arquivos, não caracteriza, por si só, um crime de direitos autorais. Similarmente, quando questionado sobre a legalidade de ferramentas de código aberto como o EcoLauncher ou o Hydra Launcher, o especialista afirma que isso dependeria de como o sistema opera e se há autorização dos titulares dos direitos. Caso contrário, mesmo sem hospedar conteúdos, o projeto poderia acabar infringindo a legislação.
Por outro lado, quanto a parte educativa da Ecológica Verde, a situação pode mudar de figura dependendo do conteúdo dos tutoriais ou da maneira como esses links são organizados e distribuídos. Caso envolvam instruções para burlar proteções ou acessar conteúdos de forma ilícita, a prática pode, sim, configurar crime — algo que os responsáveis alegam não fazer.
Outro ponto relevante é a diferença entre quem apenas consome conteúdo pirata e quem o compartilha ativamente. Na legislação brasileira, a pena é mais severa para aqueles que promovem ou distribuem obras protegidas sem autorização, especialmente em escala. Nesse contexto, Carboni comenta: “Não é uma boa estratégia para os titulares de direitos acionar o usuário final”.
Por fim, apesar de compreender o crescimento de iniciativas como a Ecológica Verde como um sintoma da desigualdade no consumo e distribuição das obras, Carboni afirma que é possível resolver o problema conciliando estratégias jurídicas e de políticas públicas. Ele acrescenta, contudo, que as leis vigentes estão defasada para essa discussão e para o atual contexto socioeconômico: “O direito autoral que temos não está preparado e nem quer se preparar para isso,” afirma, “ele está preocupado em garantir a remuneração aos criadores, com pouca preocupação no uso social das obras.”
O que torna os jogos tão caros no Brasil e como isso afeta a pirataria?
Todo o contexto considerado, não é surpresa afirmar que o cenário tributário brasileiro impõe barreiras ao acesso aos jogos eletrônicos, tornando o país um dos mercados com os preços mais elevados do mundo no setor. Justamente por isso, títulos em lançamento custam cada vez mais caro no mercado nacional, com preços variando entre R$ 300 e R$ 350 para as versões-base — e deve ficar ainda mais caro nos consoles. Essa distorção é causada pela incidência de impostos como IPI, ICMS, PIS/COFINS e Imposto de Importação, que em alguns casos podem elevar o preço final em até 80%, segundo dados da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais (Abragames).
Embora o governo federal tenha promovido reduções pontuais em tributos para consoles e acessórios — como os decretos de 2020 e 2021 que diminuíram o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para videogames — o impacto sobre os preços de jogos ainda é limitado. Isso se dá principalmente porque boa parte do conteúdo digital continua sendo tributada em alíquotas elevadas, e enfrenta variações cambiais desfavoráveis, ainda que lojas como a Steam tentem manter um preço competitivo. Além disso, como o ICMS é estadual e varia entre 18% e 25%, muitos produtos digitais sofrem com a falta de uniformização tributária no país, dificultando o acesso mais democrático a esse tipo de entretenimento.
Diante desse cenário, a pirataria se tornou um fenômeno persistente e um tanto comum no Brasil. Um estudo da Newzoo, divulgado em 2023, mostrou que cerca de 41% dos jogadores brasileiros já recorreram a jogos piratas ou emulados em algum momento, número que supera a média global. Isso ocorre porque, para muitos, o preço oficial de jogos e consoles novos é incompatível com a realidade financeira nacional, onde o salário-mínimo gira em torno de R$ 1.412 (dados do Governo Federal, 2024).
Apesar da popularização de serviços como Xbox Game Pass e PlayStation Plus, que oferecem catálogos com centenas de títulos a preços mensais, a pirataria ainda se mantém forte — especialmente no ambiente de jogos antigos, emulados ou fora de catálogo. Segundo a própria Abragames, enquanto não houver políticas fiscais mais equilibradas e estratégias comerciais adaptadas ao perfil econômico do público brasileiro, esse tipo de consumo irregular continuará a fazer parte do mercado informal.
Portanto, reduzir impostos e criar condições comerciais mais acessíveis não é apenas uma questão econômica, mas também cultural e social. Tornar os jogos mais baratos e acessíveis é fundamental não só para combater a pirataria, mas para incluir milhões de brasileiros no mercado formal de games, permitindo que eles tenham acesso legítimo à cultura e ao entretenimento digital de forma justa, moderna e compatível com a realidade do país.
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