Em 2020, uma pesquisa encomendada pela Conferência sobre Reivindicações Materiais Judaicas Contra a Alemanha, chocou a mídia norte-americana ao divulgar os números que mostram o quanto os jovens não sabem quase nada sobre a era do Holocausto, que aconteceu durante o governo de Adolf Hitler, na Alemanha de 1938 a 1945, na Segunda Guerra Mundial, responsável pela morte de 11 milhões de pessoas.
Foi divulgado que quase dois terços dos jovens adultos dos Estados Unidos não sabem que 6 milhões de judeus foram dizimados durante esse período, e mais de um em cada 10 acredita que os judeus causaram o Holocausto. Metade dos adultos considerados pertencentes a geração Y e Z, com idades entre 18 e 39 anos, 48% deles não conseguiu citar um campo de concentração ou gueto onde aconteceram massacres coordenados pelo Terceiro Reich, nem mesmo Auschwitz-Birkenau, o mais famoso campo da História, presente em livros, séries, filmes e difundido grandemente pela sociedade.
Um quarto dos entrevistados (23%) alegaram que o Holocausto é um mito, que foi exagerado pela mídia e por aqueles que “venceram a guerra”, ou que não tinha certeza sobre sua verdade. Um em cada oito jovens disse que não tinha ouvido falar, ou que achava que não tinha ouvido, sobre o acontecimento mais emblemático do século XX. Nacionalmente, porém, 63% dos entrevistados não sabiam dos assassinatos aos judeus, e 36% deles achava que 2 milhões ou menos haviam sido mortos.
Ensinando sobre o passado
(Fonte: The Independent/Reprodução)
Quando a professora Roselle Kline Chartock, então com 28 anos, ouviu seu colega Jack Spencer se lamentar sobre a falta de textos sobre o massacre sistemático desempenhado pelos nazistas às minorias na Segunda Guerra Mundial em livros didáticos nas escolas públicas — eram meados de 1972, e ele trabalhava na Monument Mountain Regional High School, Nova Jersey, EUA.
Mesmo consumida pelo idealismo e a vontade de tentar fazer seus alunos entenderem que era necessário tornar o mundo um lugar melhor após todos os horrores daquele século, Chartock chegou à conclusão de que tudo o que ela sabia sobre o Holocausto vinha do romance Êxodo (1952), de Leon Uris, apesar de sua educação judaica. Então ela teve dificuldade para procurar uma maneira de despertar uma sensação de empatia em seus alunos pelo sofrimento alheio e entendimento sobre os perigos de ficar calado diante do mal usando o Holocausto como instrumento como referência.
No verão daquele ano, Chartock reuniu livros de prosa e poesia, lembranças de sobreviventes, reflexões filosóficas e até letras de músicas que fizessem referência ao Holocausto, para ter como base para discussões sobre o tópico em sua aula de História mundial. Ali surgiu a primeira grade educacional sobre o que Hitler fez com milhares de pessoas, com adição do assassinato em massa de armênios após a Primeira Guerra Mundial, o deslocamento de nativos americanos e a escravidão e o comércio de escravos.
(Fonte: History Today/Reprodução)
Enquanto isso, em outras partes do país, professores de História e estudos sociais também tinham a mesma ideia, desenvolvendo os próprios métodos sobre como ensinar a nova geração sobre o Holocausto, enxergando como uma oportunidade de conduzir os alunos aos primeiros estágios do que o renomado psicólogo Lawrence Kohlberg chamava “desenvolvimento moral”.
A Anti-Difamation League (ADL) uniu Chartock a esses demais professores na empreitada contra o esquecimento do nazismo, cruzando o caminho de Harry Furman, o único judeu e professor de ensino médio, filho de um pai que havia sobrevivido à Auschwitz, e de uma mãe transportada aos 14 anos da Polônia para um campo de concentração na Tchecoslováquia.
O desejo de Furman em conscientizar as pessoas sobre os horrores do passado, foi inspirado pela própria negação de seus pais, que apenas queriam deixar tudo o que sofreram para trás na Europa, se esforçando para dar um senso de normalidade para tudo o que viveram, como se aquilo fosse algum tipo de “ossos do ofício” da guerra.
Demorou até 1978 para ser desenvolvida a grade curricular O Holocausto e o Genocídio: Uma Busca pela Consciência, testada em todo o estado de Nova Jersey em 1980, e incorporada aos planos de aula de estudos sociais em todas as escolas.
Dois anos mais tarde, a iniciativa ganhou o maior impulso que poderia ter, quando o governador Thomas Kean criou um Conselho Consultivo sobre Educação sobre o Holocausto, com o Estado fornecendo um orçamento para isso.
Os pioneiros da história
(Fonte: Rolling Stone/Reprodução)
Antes de a implementação do estudo sobre as causas e efeitos do nazismo no século XX se infiltrar na sociedade através dos livros didáticos das crianças, os artistas de revistas em quadrinhos já estavam fazendo isso desde a década de 1950, quando toneladas de relíquias do Holocausto ainda eram resgatadas dos campos de concentração.
Com isso, os quadrinhos considerados obscuros devido ao seu teor sólido e ilustrativo sobre o destino das pessoas que entravam nas câmaras de gás, ganharam conhecimento dos americanos, levando-os para a realidade de muitos sobreviventes do Holocausto.
Em janeiro de 1945, poucos antes da libertação de Auschwitz, um grupo de jornalistas e artistas, muitos dos quais eram imigrantes europeus, publicou uma revista de 50 páginas intitulada The Bloody Record of Nazi Atrocities, impressa pela Arco Publishing Company, uma editora com sede em Nova York.
Apesar de a HQ ter omitido que a etnia das vítimas foi o fator motivador do nazismo, pensando em fomentar a máquina da guerra para os Aliados, focando apenas na ampla desumanidade nazista —, ela combinava fotografias, ilustrações, desenhos e textos fiéis ao que realmente aconteceu por trás dos muros e cercas de arame farpado dos campos.
(Fonte: The New York Times/Reprodução)
Acompanhando a revista, o intitulado Nazi Death Parade, o quadrinho de 6 páginas criado em 1944 pelo emigrante austro-húngaro August Maria Froehlich, foi considerado a mais antiga representação do destino que as vítimas do Holocausto levaram ao chegarem nas câmaras de gás.
A narrativa mostrava que os presos eram desnudados de roupas e pertences, depois encaminhados para banhos que abririam seus poros para um envenenamento mais rápido antes de serem expostos ao gás letal. O quadrinho também descrevia soldados nazistas resgatando os dentes de ouro das vítimas e colocando os cadáveres em um forno para cremação.
Na época em que Froehlich desenhou o quadrinho, em 1944, poucas informações sobre o que acontecia nos campos de concentração estavam disponíveis, e os americanos, em específico, se esforçavam menos ainda para saber pelo que as vítimas do Holocausto estavam passando.
Os líderes Aliados se preocupavam mais em não se entregarem à propaganda que falava do lado ruim da guerra, porque poderia aparentar um comportamento comunista. Além disso, eles também temiam que, ao relatar o sofrimento dos judeus, sucumbiriam à manipulação judaica. Nos EUA, o sentimento anti-imigração, o nativismo e antissemitismo enorme ajudaram a atenuar o sentimento de indignação causado pelos crimes dos nazistas.
O legado das páginas
(Fonte: Jewcy/Reprodução)
“Os criadores de quadrinhos foram realmente pioneiros desconhecidos na educação sobre o Holocausto”, disse Rafael Medoff, historiador e diretor do Instituto David S. Wyman para Estudos do Holocausto, em Washington, em matéria ao Huffpost.
Em uma época em que a globalização ainda não havia acontecido, sem a expansão da internet ou da televisão, os quadrinhos eram uma espécie de compulsão social, principalmente entre os jovens, por isso os pais temiam que o veículo “atrofiasse” suas mentes. Enquanto isso, os quadrinistas se aproveitaram do fato de que as revistas eram fáceis de produzir e estavam em alta, para contar uma história que estava acontecendo em outra parte do mundo, com pessoas que, em tese, ninguém se preocupava.
Por outro lado, o apelo do Holocausto também fez parte da ansiedade do capitalismo. Uma vez que os jovens estavam gastando dinheiro para comprar quadrinhos e não livros, os artistas, sobrecarregados e mal pagos, ansiosos por um sucesso, fizeram de tudo por isso, inclusive tocar em assuntos mais obscuros, como o nazismo, para prender o leitor através de histórias perturbadoras, que ficavam melhores ainda sendo verdadeiras.
(Fonte: The Smithsonian Magazine/Reprodução)
Quando as editoras perceberam essa “fórmula para o sucesso”, narrativas nazistas se tornaram cada vez mais frequentes. No caso da Marvel ou DC Comics, o tema foi absorvido em aspectos fictícios do próprio universo dos quadrinhos, dando uma pitada a mais na narrativa.
Ainda que esse tipo de quadrinho não tenha sido criado com um tom moral ou educativo em mente, eles refletiram a consciência social de seus artistas por trás das páginas. E funcionou, ainda mais sob a necessidade de universalizar horrores de uma mancha histórica para um público americano cético, preconceituoso, autocentrado e até maldoso — ainda que, por vezes, muitos achassem que aquilo não passasse de pura ficção.
#SuperCurioso | www.supercurioso.online